Um Lugar Silencioso” recusa o susto pelo susto e assim mesmo consegue incluir o espectador naquilo que vai à tela. O filme de John Krasinski, uma exaltação à inteligência do espectador ao nunca se curvar às suas preferências, mostra com tal expediente que o público tem de aprender a exigir mais — até (ou principalmente) das histórias de terror. O roteiro, parceria de Krasinski com Bryan Woods e Scott Beck, acompanha uma família em que o próprio diretor dá vida a Lee Abbott, o pai, uma figura marginal na trama. Junto com a mulher, Evelyn, interpretada por Emily Blunt (casada com Krasinski também fora das telas), e os três filhos, Marcus, personagem de Noah Jupe; Regan, vivida por Millicent Simmonds; e o mais novo, de Cade Woodward, os cinco tentam manter-se vivos no que restou do mundo depois da invasão de criaturas extremamente violentas que deram cabo de boa parte da população da Terra, forçados a adotar um hábito essencial para tanto: fazer todo o silêncio que puderem, uma vez que esses predadores vorazes são dotados de uma audição muito superior à humana, condição que lhes permite chegar ao local exato em que se escondem suas presas ao menor ruído que façam. Regan é a única que passa pela experiência sem maiores dificuldades, por ser surda — e sempre que a personagem aparece em cena, o enredo adquire as cores de realidade fantástica de que uma produção dessa natureza tanto necessita, graças ao desempenho irretocável de Simmonds, surda na vida real.
Já na abertura, uma tela negra informa que se está no dia 89, isto é, no 89° dia após o surgimento dos agressores. Desenrola-se uma sequência que exibe o abandono, onipresente, maciço, realçado por um golpe de ar seco que corta o silêncio do ambiente. Por entre os escombros do mercado Larkin, os Abbott se deslocam na ponta dos pés à cata de alimento e dos remédios que Marcus toma para combater uma gripe. Todos esses cuidados, que incluem até a comunicação por sinais, à qual estão habituados devido à deficiência de Regan, acabam não adiantando, porque um descuido mínimo põe tudo a perder. A insistência no postulado de que o silêncio vale mesmo ouro, ou melhor, o raciocínio de que preservar-se sempre calado ou arriscar um inofensivo suspiro vem a ser a diferença entre a vida e a morte, torna-se uma verdadeira fixação para Krasinski. Os sobreviventes andam pela cidade inteira sem sapatos, e se começa a questionar se Lee já não estaria vivendo um estado de paranoia irremediável, preocupado demais com inimigos aparentemente pacificados ou que, pelo menos por enquanto, se deixam absorver por algum outro interesse. De qualquer forma, o patriarca de “Um Lugar Silencioso” continua a vagar, e a família atrás, todos descalços, como Abraão, em busca da terra prometida. E assim se passa um ano.
Essa mudança no tempo narrativo não se converte em alento para os nômades, e ainda traz novos desafios. Novamente grávida e às vésperas de dar à luz, Evelyn padece de todas as incertezas quanto ao futuro, tão características de uma mulher no seu estado, e agravadas pelas circunstâncias em que será obrigada a criar seu filho. Há alguma chance de que a vida seja outra vez o que fora? Quanto tempo mais terão de esperar? Vale a pena? Ao passo que suas inquietações não encontram respostas, Lee não esmorece e segue pesquisando, em artigos de jornal e trabalhos científicos, alguma evidência que lhe garanta (ou ao menos lhe insinue) que um dia livrar-se-ão dos novos donos da Terra e terão de volta a serenidade de tempos cada vez mais relegados a uma memória distante.
O argumento de criaturas monstruosas que sequestram domínios sobre os quais o homem exercia a posse inquestionável ronda o cinema volta e meia. Febre a partir do fim dos anos 1970, produções com essa temática vieram para ficar e à medida que a tecnologia se aprimorava, os roteiros tornavam-se mais e mais ousados. No que toca às particularidades dos seres anômalos de “Um Lugar Silencioso”, a intolerância a sons — e, portanto, a qualquer modalidade de comunicação — já foi igualmente bem explorada em marcos do cinema do século 20, sendo Duna (1984), dirigido por David Lynch, o mais fascinantemente perturbador. O filme de Krasinski, assim como Duna, reeditado em 2021 sob a perspectiva muito mais criteriosa de Denis Villeneuve, é original como poucos. Olhares mais treinados enxergam na leitura de Villeneuve as óbvias referências ao descaso do homem para com o mundo, a imensa casa que deixa ruir à falta de manutenção e, principalmente, pelo mau uso de suas comodidades; à indiferença ao outro, em especial ao que não têm todos os sentidos à flor da pele; à união da família como condição inescapável quanto a se manter vivo em situações de adversidade. Sem discursos de moralismo sub-reptício, só o refinamento estilístico e intelectual de um diretor que usou o tempo — e a carreira — a seu favor.
Filmes de terror são excelentes meios para o homem elaborar conjecturas hostis sobre um mundo que pode vir a não reconhecer, antevendo soluções e as atitudes a serem tomadas a fim de se alcançar a solução redentora. É exatamente o que John Krasinski oferece a seu espectador em “Um Lugar Silencioso”, uma história aterradora em que monstros são apenas um detalhe.