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Entenda em 9 pontos como funcionava o esquema de fraude da Americanas

Contratos de publicidade e dívidas com fornecedores foram usados para turbinar números da empresa, aponta documento. Operações eram lançadas como receitas e como despesas, em fraude de mais de R$ 25 bi

A Polícia Federal deflagrou, na manhã desta quinta-feira, a Operação Disclosure contra os ex-diretores da Americanas, acusados de fraudes contábeis que, conforme divulgado pela própria empresa, chegam ao montante de R$ 25,3 bilhões. A operação Disclosure, realizada em parceira com o Ministério Público Federal, levou cerca de 80 policiais federais para as ruas do Rio de Janeiro.

Os agentes cumprem dois mandados de prisão preventiva e 15 mandados de busca e apreensão. Segundo o colunista Lauro Jardim, está entre os alvos o ex-CEO Miguel Gutierrez, que vive em Madri, na Espanha, há pelo menos um ano.

Em junho do ano passado, a Americanas admitiu, pela primeira vez, que sua antiga diretoria realizou uma série de fraudes para esconder a real situação da companhia.

Antes chamadas pela empresa de “inconsistências contábeis”, as operações foram detalhadas em comunicado ao mercado financeiro em que a nova diretoria relata os resultados preliminares da investigação independente que está sendo conduzida na empresa.

O documento mostra como a empresa fez uso de contratos de propaganda e financiamentos a fornecedores fictícios ou maquiados para tentar maquiar seus números.

O resultado dessas operações foi uma fraude de mais de R$ 20 bilhões que, segundo o novo presidente da Americanas, Leonardo Pereira, que assumiu o comando da empresa após o pedido de recuperação judicial, gerou um lucro artificial. Com base neste resultado contábil maquiado, foram pagos os bônus para a diretoria, dividendos para acionistas e impostos.

Em junho do ano passado, em depoimento à CPI da Americanas na Câmara, Pereira explicou que a fraude ocorria por meio de lançamentos com sinais opostos no balanço da empresa, em alguns casos adicionando valores e em outros subtraindo montantes, o que dificultava a detecção da irregularidade. Por isso, não é possível somar as rubricas das fraudes descritas.

— Para não haver confusão: R$ 40 bilhões é a dívida que está em recuperação judicial, R$ 20 bilhões é o tamanho da fraude. Dentro desses R$ 20 bilhões, a afirmação é injusta com todos os analistas de todas as casas de investimento que recomendavam a compra da ações das Americanas. Era impossível perceber a olho nu essa fraude — afirmou Pereira, detalhando como as operações eram lançadas com sinais inversos:

— O que se apresentava dentro do balanço da companhia para análise de seus investidores era uma posição consolidada, era mais R$ 18,1 bilhões do efeito do risco sacado (as operações com fornecedores nas quais houve fraude) aumentando o contas a pagar, porque estava indevidamente (lançado no balanço) e do outro lado menos R$ 17,7 bilhões do efeito do VPC (verbas de propaganda). Portanto, um analista a olhos de mercado ia enxergar apenas R$ 400 milhões ali dentro.

Entenda, em nove pontos, como a empresa conseguiu esconder por tanto tempo essa fraude bilionária e as consequências que o documento revelado podem ter:

1. Contratos de publicidade artificiais

A antiga diretoria da Americanas, de acordo com o fato relevante, teria usado uma série de contratos fictícios de propaganda, “artificialmente criados para melhorar os resultados operacionais” da empresa.

Esse tipo de contrato movimenta a chamada Verba de Propaganda Cooperada (VPC). Para reduzir custos, as varejistas promovem ações de publicidade de produtos de seus fornecedores. Ao fazer essa “cooperação”, a empresa ganha um desconto na hora de pagar pelos artigos adquiridos.

2. Instrumento comum do varejo

André Pimentel, sócio da consultoria Performa Partners, especializada em varejo, afirma que o instrumento é “comumente” usado no setor e, historicamente, é considerado um ponto que demanda a atenção das empresas de auditoria contábil. No passado, esse tipo de contrato já foi fonte de problemas em balanços de varejistas. O exemplo mais recente aconteceu com o Carrefour, em 2010.

— Faz sentido que a indústria beneficiada na propaganda dê uma contrapartida financeira. Isso envolve uma negociação. No caso da Americanas, ao que parece, essas negociações e contratos não existiam na realidade — explica.

3. Contrato sem lastro

As contrapartidas contábeis desses contratos de VPC “não tiveram lastro financeiro associado” e foram em sua maior parte lançados como “redutores da conta de fornecedores”, de modo a reduzir o custo da mercadoria vendida, segundo o fato relevante da Americanas. Ao todo, esses redutores somam R$ 17,7 bilhões no balanço da varejista. Outros R$ 4 bilhões aparecem no balanço como ativo da companhia.

4. Fraude clássica

Para o advogado Antônio Mazzucco, do escritório Mazzucco e Mello, que representa credores não financeiros da Americanas na recuperação judicial da varejista, o caso é uma fraude clássica.

— Criou-se um ativo que não existia na Americanas. É a típica fraude contábil. Esses contratos eram fictícios e geraram créditos sem lastro para a companhia — afirma.

5. Duração é uma incógnita

O documento não revela por quanto tempo esse esquema funcionou, apenas diz que os lançamentos ocorreram por “um significativo período” e atingiram o saldo de R$ 21,7 bilhões no fim de setembro do ano passado.

Pimentel afirma que não está claro se todos os contratos de propaganda cooperada da Americanas eram falsos.

— Esse comunicado serve para a Americanas dar uma resposta ao mercado e dizer que está trabalhando. Mas não diz por quanto tempo houve esse problema, quanto isso afeta a margem e os resultados — diz.

6. Favorecidos

Mazzucco diz que o documento é favorável aos membros do conselho de administração da Americanas, entre eles o acionista Carlos Alberto Sicupira, que junto com Marcel Telles e Jorge Paulo Lemann forma o trio de acionistas de referência da Americanas.

— Se houve fraude nas contas apresentadas e somente os diretores sabiam, os acionistas podem mover uma ação contra os administradores da empresa. Ocorre que quem elegeu os supostos bandidos foi o conselho de administração. Além disso, um conselho se reúne regularmente e avalia negócios e relatórios gerenciais. Uma fraude desse tamanho extrapola as demonstrações financeiras. Vejo com sérias reservas o documento — ressalta Mazzucco.

Dizer que o conselho de administração está isento de responsabilidade porque a diretoria da empresa fraudava, apenas em VPCs, R$ 21,7 bilhões, além de contratos de empréstimo que eram cadastrados como dívida como fornecedor, é “questionável”, pondera o advogado.

7. Responsabilização e desdobramentos

Em suas quatro páginas, o documento assinado pelas Americanas afirma que os membros da diretoria estatutária da companhia foram os responsáveis pela fraude, buscando “ocultar do conselho de administração e do mercado em geral a real situação de resultado e patrimonial da companhia”.

Pimentel, da consultoria Performa Partners, diz que essa afirmação deve sofrer questionamentos na Justiça.

— A companhia formalmente admitiu que houve um crime. O plano de recuperação judicial da Americanas diz que os stakeholders (credores) têm de abrir mão do direito de litigar com a companhia. É improvável que se mantenha desse jeito na Justiça — afirma Pimentel.

8. Outras novidades do documento

Há também mais R$ 2,2 bilhões em operações de capital de giro também mal classificadas, ainda de acordo com o fato relevante. Para a advogada Beatriz Trovo, especialista em mercado de capitais, é provável que esse montante “tenha sido contabilizado no balanço, mas em uma ‘linha’ errada”.

Segundo a Americanas, “a indevida contabilização dessas operações de financiamento nos demonstrativos financeiros da Americanas não permitiu a correta determinação do grau de endividamento da companhia ao longo do tempo”.

O documento ainda afirma que “foram identificados lançamentos redutores da conta de fornecedores oriundos de juros sobre operações financeiras, que deveriam ter transitado pelo resultado da companhia” de R$ 3,6 bilhões em 30 de setembro. Para Pimentel, essa cifra teria impacto significativo no resultado da varejista.

Beatriz Trovo afirma que o imbróglio deve resultar em ainda mais atrasos na divulgação de resultados da Americanas. A companhia já está atrasada na divulgação das demonstrações relativas ao quatro trimestre de 2022 e ao primeiro trimestre deste ano.

9. O esquema que já era conhecido

A operação de risco sacado, ou forfait, que deu origem ao escândalo envolvendo a Americanas em janeiro, também aparece no fato relevante citada como fraude de R$ 18,4 bilhões. Risco sacado é uma modalidade de operação por meio da qual um varejista compra mercadorias de um fornecedor usando uma triangulação com uma instituição financeira, que antecipa o pagamento ao fornecedor e cobra dele e do varejista juros e encargos pelo serviço.

Desde 2016, a Comissão de Valores Mobiliários, órgão regulador do mercado de capitais, orienta as empresas a classificar essas operações como dívida bancária, mas a Americanas colocava os valores desse tipo de operação bancária na conta de fornecedores, como se não fosse uma dívida com instituições financeiras.